Vozes em Risco: os desafios atuais da dublagem nos games

Será que damos o devido valor a uma das áreas que mais enriquecem os jogos que amamos?


Eu sei e você sabe que a dublagem tornou-se parte essencial da experiência nos jogos. Desde que o recurso se fez presente nos games, a voz dos personagens mostrou ter o poder de enriquecer a imersão do jogador em mundos fictícios.

Contudo, nos bastidores, o cenário da dublagem tem se tornado cada vez mais instável. Salários baixos, jornadas mal pagas, exigências que extrapolam o trabalho do profissional e mais recentemente, uma preocupação plausível com “a ameaça da inteligência artificial”. Essas discussões acerca de IA na dublagem transformaram o que antes era arte em um campo de disputa ideológica.

Reprodução: Brasil Game Show

Enquanto muitos fãs celebram as atuações icônicas que marcaram suas experiências favoritas, trazendo dubladores para eventos como BGS e Gamescon com prestígio do público, poucos são informados o bastante para saber que por trás dessas performances existe uma indústria que constantemente leva seus trabalhadores ao limite.

Em 2023, o sindicato norte-americano SAG-AFTRA (Screen Actors Guild – American Federation of Television and Radio Artists) entrou em greve reivindicando, entre outras coisas, proteção contra o uso indevido de IA e melhores compensações pelo uso de sua imagem e voz em mídias digitais e interativas.

Essa greve, que paralisou produções em Hollywood e também afetou a indústria de games (você reparou aquele seu gacha sem dublagem no último patch?), reacendeu discussões importantes sobre o futuro das vozes humanas nas mídias interativas.

Em um mundo onde vozes podem ser clonadas por IA, replicando performances com precisão assustadora, até que ponto o trabalho artístico continua tendo valor? Mais importante: quem controla essas vozes quando são transformadas em dados manipuláveis pelos estúdios?

Felizmente, o medo ainda é embasado em casos isolados, mas é inegável que títulos que antes valorizavam grandes nomes da dublagem agora flertam com alternativas automatizadas, como vimos a gigante Epic Games fazer recentemente ao introduzir um chatbot para dublar sua própria versão de Darth Vader em Fortnite ou o vazamento infame de uma Aloy (Horizon) falando como uma versão capada do ChatGPT.

Tal iminência promete cortes de custos e maior controle criativo, ainda que à custa da autenticidade. Atores de voz ocidentais famosos como Jennifer Hale (Bayonetta), Troy Baker (Kanji Tatsumi) e David Hayter (Solid Snake) já se manifestaram sobre o avanço da IA, alertando para os perigos de substituição total de dubladores humanos.

Apesar de parecer alarmismo, essas discussões são apenas fruto de um fenômeno que se torna cada vez mais agudo desde a revolução industrial: a precarização do trabalho. Aqui mesmo, no Brasil, a dublagem tem sido reduzida a uma formalidade mal remunerada, mal dirigida e com prazos cada vez mais absurdos.

Mesmo vivendo em um país com escolas tradicionais de dublagem e nomes lendários na arte, nunca faltam relatos de estúdios pagando valores abaixo do piso, pressionando por entregas com prazos irreais e, mais recentemente, testando dublagens híbridas com vozes geradas por IA e apenas “refinadas” por humanos.

Para os games, que então se valiam de música de sintetizador e sons de digitação genéricos para diálogos, criou-se um paradoxo no século XXI: nunca se consumiu tantos jogos com voz, ao mesmo tempo que nunca se valorizou tão pouco o trabalho dos dubladores.

As distinções entre o mercado de “Voice Actors” e “Seiyuus”

Trazendo para o campo que falamos aqui no site, existem diferenças muito importantes sobre o tratamento que dubladores recebem no ocidente e no Japão. A dublagem nos games no Ocidente ainda é vista como um trabalho técnico e invisível, sendo exceções apenas para nomes extremamente conhecidos previamente.

O Brasil segue um modelo bem similar, cujo sistema costuma pagar por sessão ou por linha, sem participação nos lucros de um game que pode faturar milhões. O contrato padrão da SAG‑AFTRA para jogos (Interactive Media Agreement), por exemplo, oferece cerca de US$ 800 por até 300 palavras faladas em quatro horas. Acontece que este valor é único, ou seja, não há quaisquer bônus por vendas nem reconhecimento da longevidade da voz.

Boa parte da razão para a insatisfação da categoria ao redor do mundo envolve os mesmos problemas, já que, embora a indústria de games movimente cifras bilionárias, os dubladores recebem uma quantia ínfima. Um caso que sempre vem à mente é o de Jennifer Hale, que recebeu US$ 1.200 para dublar Naomi Hunter em Metal Gear Solid, um dos jogos mais reconhecidos da história.

Já no Japão, embora o respeito pelos seiyuus seja evidente na cultura pop, a realidade financeira é menos glamurosa. Apenas cerca de 10% dos profissionais conseguem se sustentar exclusivamente com a dublagem em animação ou games. A maioria precisa complementar a renda com trabalhos paralelos, como eventos, rádio ou empregos de meio período.

Akari Kito ganhou status de celebridade por Genshin Impact, Demon Slayer e Love Live

Um seiyuu iniciante pode ganhar apenas ¥15.000 (aprox. R$560) por episódio gravado, e até os mais experientes raramente ultrapassam ¥45.000 (cerca de R$1700) por sessão. Levando em conta despesas e custos de vida, especialmente em Tóquio, uma das cidades mais caras de se viver no mundo, muitos mal se sustentam.

Em compensação, o seiyuu no Japão é tratado como um idol. É comum ver seus nomes em destaque nas capas de jogos, shows, jingles e fan meetings e cantando covers musicais em festivais como o famoso Animelo Summer Live. Esse status de celebridade dá aos melhores uma carreira multimídia, com fã clubes pessoais, lançando marcas de produtos próprias e recebendo convites para programas de TV.

A dinâmica dos estúdios de anime e games no Japão pode agravar essa dualidade. Agências chegam a pagar seiyuus por sua popularidade, sem considerar a quantidade de falas, talento ou adequação ao personagem. Isso vem tornando a nomeação em grandes franquias altamente injusta para com novos nomes da área, com eventos de audição para milhares de candidatos sendo dispensados a fim da seleção de um talento já conhecido ser preferida.

No Ocidente, a invisibilidade se manifesta na falta de bônus merecidos, contratos abusivos e uso precoce de IA; enquanto no Japão, o status é público, mas muitos profissionais vivem com insegurança financeira e têm pouca perspectiva de desenvolvimento. Ter empresas de jogos babando por “imortalizar vozes em IA” cria um precedente perigoso para ambos os mercados.

Da precarização do trabalho ao fascínio com Inteligência Artificial

Toda essa discussão faz parecer que este texto é um discurso de “grandes corporações são malvadas”, mas o buraco é mais embaixo. Recentemente, o estúdio indie Serene Questworks foi acusado de planejar substituir quase 4000 linhas de voz por IA, mesmo depois de gravar com atores humanos.

Mika Nerida, uma das dubladoras envolvidas, afirmou que os produtores pretendiam usar uma ferramenta de IA gerada a partir das falas dos próprios dubladores envolvidos para criar novas falas, descartando o elenco original em seguida. Esse tipo de movimento ilustra como, sob o pretexto da economia de recursos, a indústria está disposta a desvalorizar o trabalho humano quando regulações não existem.

O caso que citamos há pouco, da Epic Games, gerou mais que apenas desconforto. No momento da produção deste texto, a empresa enfrenta um processo trabalhista por uso de IA. O sindicato estadunidense considera essa prática uma violação de direitos, acreditando que substituições automáticas ameaçam a existência de dubladores profissionais. O caso ficou tão sério que a NLRB, agência americana de direitos trabalhistas, se envolveu na disputa .

Agora fazendo a advogada do diabo, do outro lado da trincheira, estúdios defendem o uso de IA como uma ferramenta para automatizar falas complementares, os chamados “call-outs contextuais” ou diálogo de fundo. O argumento é de que isso economiza tempo e recursos, liberando dubladores para papéis principais, o que parece uma justificativa plausível.

Outro caso interessante foi com Apex Legends: mais de 30 dubladores franceses, incluindo a voz de Wraith, imensamente reconhecida no país, se recusaram a adicionar cláusulas que permitam usar suas vozes para treinar IA. A alegação foi de que, se isso não for estabelecido antecipadamente, essas cláusulas de proteção jamais existirão. 

Algumas vozes da própria indústria de dublagem, como Andy Magee, apoiam um uso consciente da IA, utilizando ferramentas do tipo para criar vozes britânicas por contrato, reconhecendo que essa tecnologia pode aliviar o desgaste físico em longas sessões de gravação . Isso indica que o desafio é encontrar um equilíbrio entre a automação e o valor humano, garantindo que o uso de IA proteja a voz do profissional e gere remuneração justa.

Proteger a dublagem é proteger os jogos como conhecemos

Reitero que, videogames são cada vez mais uma experiência narrativa; e sou suspeita para falar, já que jogos narrativos são uma paixão pessoal, mas isso me fez produzir este texto e enxergar como a voz é uma das ferramentas mais potentes para transmitir emoção, identidade e conexão nos jogos.

Ao meu ver, quando dubladores entregam performances marcantes, eles não estão apenas lendo falas mas estão criando memórias, construindo personagens que ficarão com o jogador por décadas e, dependendo de sua idade, influenciarão sua personalidade. Eu aprendi inglês com videogames e muitos dos meus trejeitos falando inglês vêm de dubladores de jogos.

Para que a indústria avançe nesse sentido, algumas mudanças são cruciais. A primeira que consigo pensar é a adoção de contratos mais justos e transparentes, que incluam cláusulas de proteção contra uso indevido de voz por IA como padrão, além do pagamento por reutilização e participação em lucros quando cabível, similar ao que se faz com livros.

Outra medida importante seria o fortalecimento da presença sindical (que infelizmente é tabu nos EUA) e a ampliação de acordos coletivos que cruzem fronteiras. Enquanto sindicatos como a SAG-AFTRA ou Equity tentam proteger seus membros, muitos dubladores ao redor do mundo seguem sem nenhum respaldo legal.

Por fim, é necessário que os próprios jogadores entendam o valor das vozes que acompanham suas jornadas, algo que eu espero que este texto ajude a compreender. Celebrar os atores, divulgar seus nomes, apoiar greves quando necessário e questionar o uso não ético de IA são formas de participação ativa.

Valorizar a dublagem é, também, reconhecer que videogames são feitos por pessoas, para pessoas. Gente que coloca talento, emoção e vulnerabilidade em obras que amamos. No fim das contas, preservar essas vozes é preservar o que jogos significam para nós.

Por fim, para referência, gostaria de deixar aqui uma cena que é, aos meus olhos, uma das melhores atuações que já vi em jogos, a fim de celebrar o trabalho de todos os dubladores que me deram experiências narrativas incríveis.

Compartilhe:

Like it? Share with your friends!

Qual foi a sua reação?

amei amei
1
amei
haha haha
0
haha
meh... meh...
0
meh...
eita! eita!
0
eita!
Ayana

Estudante de Letras - Japonês na Cruzeiro do Sul; formada em paleografia na oficina Sérgio Buarque de Holanda e em design pela Saga. Prefere jogos narrativos, RPGs ou de ritmo. Atualmente passa horas jogando indies e RPGs no Switch ou sustentando seu vício em gachas de celular. Tem como franquias favoritas Fire Emblem, Pokémon, Persona e Final Fantasy. Enciclopédia humana de Love Live e garota mágica nas horas vagas.